Um jornalismo peculiar
Imagine um texto com uma linguagem repleta de referências criativas, com imagens como ponto importante para a comunicação e a efemeridade como algo natural e característico. Imaginou? Pois essas são algumas das características do jornalismo de moda, não importa em qual meio de comunicação seja realizado: rádio, televisão, impresso ou, até mesmo, na mídia internet.
Além disso, é um trabalho comumente realizado por pessoas ávidas por informações e que necessitam estar em atualização constante, mais ou menos no ritmo das mudanças da moda. “É um olhar de gente que está ligada em tudo, antenada em tudo: sobre o que está nas passarelas dos desfiles e, também, nas lojas”, afirma Bruna Bauer, jornalista e editora dos sites da revista "Elle", "Estilo" e "Manequim".
Além de ser uma área que necessita de pessoas antenadas em tudo, ao que tudo indica, o leitor também deseja estar sempre sabendo das novidades desse setor. Não é por acaso que a revista de moda "Vogue", tida pelas pesquisadoras Daniela Hinerasky e Ana Marta Moreira, como uma das grandes responsáveis por profissionalizar o jornalismo de moda no Brasil, tem uma tiragem de 66 mil exemplares por mês, segundo dados do jornal "Valor Econômico", divulgados pelo site “Oficina Brasileira de Clipping”. Esse número é significativo, ainda mais se for levado em conta que, de acordo com informações do site do "Banco do Brasil", no artigo “Revista: a intimidade com o leitor”, uma mesma publicação é lida por, no mínimo, quatro pessoas, portanto, cerca de 264 mil pessoas tem acesso à "Vogue". Se lembrarmos, ainda, que essa é uma revista comumente encontrada em salões de beleza e consultórios médicos, é possível concluir que o número de leitores é bem maior.
E não é apenas isso, a moda, que já foi vista como algo fútil, conquistou um espaço dentro da grande imprensa, ficando atrás, apenas do futebol na cobertura da mídia. Prova disso é que Daniela Hinerasky e Ana Marta, descobriram em sua pesquisa, que o "São Paulo Fashion Week", maior evento de moda do Brasil, gera cerca de R$ 300 milhões em mídia espontânea, mais de 5.000 páginas de jornal e revistas e quase 600 horas em programas de televisão, entre canais abertos e por assinatura.
Longo caminho
O jornalismo de moda nem sempre teve uma posição de destaque na imprensa. Até conseguir ter a cobertura de um evento com faturamento próximo ao do futebol, considerado paixão nacional do brasileiro, muitos anos foram necessários, bem como algumas mudanças. A doutora em comunicação Dulcilia Buitoni explica, em seu livro “Imprensa Feminina”, que o jornalismo que cobre a moda nasceu praticamente em conjunto com a imprensa feminina. A primeira revista a trazer o tema foi a “Lady’s Mercury”, surgida na Inglaterra, em 1693, e que era composta por vários outros assuntos de interesse na época como, por exemplo, consultório sentimental, educação infantil e dicas de afazeres domésticos.
Imagem da edição de 27 de fevereiro de 1693, do jornal "The Ladies Mercury". Crédito: British Library
Não é complicado entender o porquê as publicações tinham essa abrangência, já que a doutora em comunicação frisa que os temas abordados nelas eram praticamente infinitos, mas frequentemente ligados ao âmbito doméstico em função da realidade de muitas mulheres, que eram donas de casas e dependentes financeiramente de seus parceiros. A moda começou a ter publicações especializadas, apenas, muitos anos depois. “Em 1800, começaram a surgir na Alemanha e na Áustria veículos dedicados exclusivamente à moda, para um público de costureiras e modistas”, fala Dulcília.
A valorização desse mercado foi lenta, ocorreu ao longo do século XlX. No entanto, mesmo valorizado, o momento para que jornalismo de moda se democratizasse e “conversasse” com praticamente todas as classes sociais, inclusive as mais baixas, só veio a acontecer quase no início de 1900. Dulcilia afirma que isso ocorreu, principalmente, nos Estados Unidos, que vivia um período de crescimento industrial e a evolução das editoras, que buscavam naquela um novo público-alvo: naquela época, além de modistas e pessoas com mais poder aquisitivo, também, a classe média.
E no Brasil, você deve estar se perguntando, quando a moda começou a ser assunto na imprensa? Até mesmo os estudiosos não têm certeza quanto à data, o que é certo é que foi no século XlX, a partir de 1862, que surgiram os primeiros periódicos destinados às senhoras. A maioria deles: “Tratava de moda, literatura e belas artes e ainda abordava a emancipação da mulher”, de acordo com as pesquisadoras Monique Vandresen e Carolina Luz, no artigo “A Comunicação e a Moda na Imprensa Brasileira do Século XX”.
O jornalismo de moda precisou de publicações, comercializadas e conhecidas até hoje, para que ganhasse ênfase no país, como é o caso das revistas “Manequim” e “Cláudia”, ambas tidas como inovadoras. A primeira por popularizar peças de roupas importadas, já a segunda, em função do investimento na contratação de profissionais como produtores de moda, modelos e fotógrafos, como comenta Dulcília Buitoni. Mesmo falando de Brasil, foram revistas surgidas em outros países, como a “Vogue”, criada nos Estados Unidos, as responsáveis para que a área ganhasse destaque e começasse a se profissionalizar.
Primeiras capas da revista "Cláudia" e "Manequim", outubro de 1961 e julho de 1959. Crédito: "Justlia"
O produtor de moda Flávio Tenguan diz que, mesmo com a explosão de publicações especializadas, é difícil encontrar jornalistas, produtores e fotógrafos qualificados no mercado brasileiro e garante: sua opinião não é embasada em “achismos”. Tenguan cita sua própria trajetória como exemplo, já que passou por diversos cargos e funções até ter o conhecimento que possui hoje. Tudo começou com o ingresso na faculdade de Moda, a partir disso teve a oportunidade de trabalhar vestindo as criações de estilistas em modelos no "São Paulo Fashion Week", organizando salas de desfiles e trabalhando em revistas como a “Mag”, de São Paulo, e a "Bianchini", de Sorocaba. Nesta última, ele afirma que se “encontrou”, ficou lá por três anos e nesse tempo foi responsável pela concepção e conceito dos editorais de moda da publicação.Para o produtor, o que falta nas pessoas que trabalham nessa área é dedicação, aliada a uma base acadêmica e experiência para poder compreender o meio e realizar um bom trabalho. Isso só não ocorre mais em função da glamorização que a moda tem sofrido, coisa que não condiz com a realidade. “Na moda existe 10% de glamour e uns 90% de transpiração, de trabalho mesmo”.
Características
“Eu tenho paixão por todos os trabalhos que faço, mas o universo feminino é muito gostoso de trabalhar”, revela a jornalista Helena Gozzano, do jornal “Cruzeiro do Sul” e que edita os cadernos "Ela" (assuntos femininos, dentre eles a moda), "Cruzeirinho" (suplemento destinado ao público infantil), "Turismo" e "Casa e Acabamento". Mas, se esse “mundo” exige tanto esforço e transpiração como Tenguan afirma, afinal, quais são as peculiaridades desse jornalismo que tanto conquistaram Helena?
Se você já folheou uma publicação, assistiu a um programa na televisão, ou acessou um site sobre moda, pode ter notado três características marcantes. A primeira delas é a constante busca por novidades, que, no caso desse jornalismo é de extrema importância, como afirma Dulcília. “Os veículos femininos impregnam-se da febre do novo, que é fundamental no sistema de moda e que passou a contaminar todos os outros conteúdos publicados a seu lado”.
Isso ocorre pelo próprio funcionamento da indústria da moda, não é a toa que o tema já foi assunto principal do livro do filósofo francês Gilles Lipovetsky sob o título “O Império do Efêmero”, em 1987. E é exatamente essa efemeridade algo marcante nessa indústria, que está constantemente propondo novas opções a seu público, conforme Ruth Joffily em sua obra, que explica “A moda se define por uma acentuada transitoriedade de padrões”. Bruna Bauer, editora dos sites das publicações "Elle", "Manequim" e "Estilo", lembra que a moda a efêmera, sim, no entanto, ela é cíclica, ou seja, o que esteve em alta em outro momento, pode voltar a ser usado anos depois. “Ela vai e volta, resgata peças e tendências de décadas anteriores, se reinventa”, explica.
Não é de hoje que a relação entre comunicação e moda funciona como verdadeira parceria, a primeira sendo responsável por dar visibilidade a segunda, já que esta constantemente propõe e alimenta aquela com informações e novidades. Além dessa peculiaridade, há outra: a importância da parte visual. Essa característica foi tornando-se mais acentuada com o passar dos anos, a partir do início do século XX. “A fotografia e o desenvolvimento de técnicas de impressão fizeram da imprensa feminina uma mídia cada vez mais visual”, cita Dulcília.
A autora faz, ainda, uma analogia interessante, dizendo que as fotos podem ser vistas como textos, funcionando como verdadeiras “frases visuais”, isso porque que as imagens são essenciais para a compreensão da mensagem que o jornalismo deseja transmitir. Mesmo possuindo um ideal, um comportamento e uma cultura por trás de roupas e acessórios, é justamente através da vestimenta que todos esses aspectos são notados. Fica difícil imaginar, então, uma imprensa relacionada a esse tema que não utiliza recursos visuais, como fotografias e ilustrações.
Outro ponto característico desse jornalismo é sua linguagem peculiar, mais descontraída que aquela utilizada no jornalismo do dia-a-dia, encontrado em jornais, por exemplo. Basta folhear uma revista sobre o tema, que isso será facilmente percebido, como citam Murilo Cesar Soares e Juliana Ogassawara no estudo “A moda na mídia: o espetáculo da São Paulo Fashion Week na imprensa”. Depois de fazerem uma pesquisa, os dois perceberam que há uma espécie de gramática própria, mais atraente do que a utilizada no jornalismo informativo. “Armado com um texto leve, repleto de referências criativas, [...] o jornalista de moda é um sedutor”, reforçam.
Tal sedução tem uma única intenção: chamar a atenção do leitor, fazer com que a partir de um texto menos “sisudo” o tema se torne atraente para seu público-alvo. Quem pensa que no jornalismo não é necessário ser criativo, se engana. A criatividade aparece, principalmente, no uso de estrangeirismos, que são adaptações de palavras ou termos de uma língua para outra, e neologismos para descrever cores, peças de roupas ou adereços. Emília Maria Peixoto Farias, na pesquisa “A neologia por composição no universo discursivo da moda”, diz que os neologismos são um processo produtivo no vocabulário da moda, que combina vários elementos, como no caso de “azul-água” ou “tom sobre tom”.
E não acaba por ai, encontrar no texto adjetivos, dando qualidade a desfiles, peças de roupas e acessórios não é nada incomum. O que poderia, muitas vezes, ser condenado no jornalismo informativo tradicional, na moda é uma realidade. “Os textos que são carregados de adjetivos e expressões coloquiais, sugerem um “diálogo” entre o jornal e o leitor”, diz o jornalista Francisco de Assis no estudo “O jornalismo que não é notícia: a produção de variedades no jornal Valeparaibano”.
Ao observar as capas da revista "Elle", é possível notar o uso de palavras em outra língua e de adjetivos. Clique nas imagens para amplia-las. Crédito: "Merengue Mousse" e "Way Model"
O jornalismo de moda atualmente Essas peculiaridades compõem um texto que se tornou muito importante para a indústria da moda e para quem deseja saber as novidades que ela apresenta, comenta Mariana Domitila. E não é para menos, o assunto que era mais um dentro de mesmo periódico, de uma revista, conseguiu ultrapassar a barreira de ser apenas uma editoria. “O jornalismo hoje é indispensável para a moda, porque para que nós tenhamos acesso as informações de moda precisamos de mensageiros, que são os jornalistas, responsáveis por dar formato a informação”. Ao que parece esses “mensageiros” têm dado conta do recado, conquistando o público, que tem se interessado cada vez mais pelo assunto. Basta notar o espaço conquistado em vários meios de comunicação. No rádio, há programas, como o “Momento Moda”, apresentado pela consultora de imagem Priscilla Brunetti e veiculado pela "Rádio USP" (FM 93,7). Glória Kalil, jornalista e consultora de moda, possui um programa na rádio "Mitsubishi" (FM 92,5) chamado “Moda Mit”. Há, ainda, o programa de Cris Guerra, blogueira e publicitária, na "Oi FM" (FM 94,1), ficou interessado? Clique aqui para ouvir as dicas de Cris! Na televisão há programas que buscam ajudar pessoas leigas a conhecer o “mundo da moda”, é o caso do “Esquadrão da Moda”, formato de programa no qual um participante que tem dificuldades para se vestir recebe uma consultoria de imagem e a quantia de 10 mil reais para renovar seu guarda-roupa com as dicas de profissionais na área. É possível assistir o programa em sua versão brasileira pelo canal “SBT”, ou a versão europeia, transmitida pelo “Discovery Home and Health”. Este último possui, inclusive, diversas atrações destinadas a ensinar não apenas uma pessoa, mas o público a utilizar a moda a seu favor. São casos do “Mude meu Look”, em que parentes, amigos e um estilista ajudam a compor um novo visual para o participante, e “Tim Guns: Guru de Estilo”, no qual são oferecidas dicas às mulheres sobre como se vestir bem, peças-chaves que todas devem ter e conselhos no momento de fazer compras. Há programas que tratam especificamente o tema jornalismo de moda, é o caso do “GNT Fashion”, do canal fechado “GNT”, e apresentado pela editora de moda Lillian Pacce. No Brasil, há, inclusive, um canal especializado em moda, que possui sua programação voltada exclusivamente ao assunto, o “Fashion TV”, criado em 2007. Deseja conhecer um pouco do programa "GNT Fashion" disponível no canal do Youtube "Jornalismoda"? Basta clicar em cima da imagem acima. As revistas não podem ser esquecidas, tidas por Flávio Tenguan como o veículo de comunicação detentor de mais prestígio quando o assunto é moda. Talvez isso se deva ao fato de ter sido o meio impresso o primeiro a abordar o tema. No Brasil, há revistas criadas em outros países, mas com edições nacionais como "Elle", "Vogue", "Marie Claire" e, em Sorocaba e região, revistas como "ArqDesign" e "Bianchini". Todas as publicações citadas acima possuem suas respectivas páginas na internet, algumas com conteúdos exclusivos para esse ambiente, como é o caso da "Elle"; e outras apenas para a divulgação do que é publicado na versão impressa, como o site da "ArqDesign". Independente do tipo ou da maneira que são usadas, as páginas que abordam moda no ambiente online têm crescido cada vez mais. Glória Kalil, além de seu programa na rádio, de aparecer esporadicamente no programa de televisão "Fantástico" e de ter publicações sobre o tema, possui um site: o "Chic", que se auto intitula o primeiro sobre jornalismo de moda no Brasil. Estar na web já não é uma opção ou um luxo para as publicações e programas de outros meios, mas, sim, uma realidade. O que mais se encontra atualmente são blogs e sites que se destinam a falar sobre moda. Afinal, se essa mídia é muito útil para a comunicação interpessoal, porque não seria se tornaria uma importante fonte de informação e conhecimento? Não é a toa que o jornalismo de moda na internet tem conquistado um espaço e uma importância cada vez maior nesse ambiente. Atualmente, utilizando qualquer ferramenta de buscas, é possível acessar páginas criadas exclusivamente para essa mídia, como o site “Homem Moderno”, que se destina a falar sobre o universo masculino, tendo a moda como um de seus assuntos mais abordados. Há, ainda, blogs como o da publicitária Julia Petit, “Petiscos”, no qual várias vezes por dia são postadas novidades sobre moda e beleza.