Moda: muito além da superficialidade
Gisele Bündchen, Kate Moss, Dolce & Gabbana, Ricardo Almeida, Anna Wintour, Glória Kalil: esses nomes são muito conhecidos na indústria da moda. As duas primeiras pessoas são modelos reconhecidas internacionalmente; a terceira e a quarta citações, são marcas; e a duas últimas, consultoras de moda. Mas, você já parou para pensar no que existe por trás disso, no que é moda? Saber que ela faz parte do dia-a-dia de cada um, muitos sabem, que é uma área que tem crescido a cada dia na imprensa, também. Basta notar quantas revistas existem sobre o assunto.
O que muita gente não imagina é o que a moda significa. Ao refletir sobre isso, inúmeras definições podem vir à mente, como algo relacionado a roupas, acessórios, tendências, indústria, história, cultura e comportamento. Nenhum desses aspectos pode ser descartado, já que a palavra envolve um conjunto de significados. O historiador Malcolm Barnard, em seu livro “Moda e Comunicação”, explica que a definição da palavra, que veio da inglesa “fashion”, era relacionada, originalmente, a algo que uma pessoa fazia, uma atividade. A expressão já chegou a ter uma relação, inclusive, com o fetiche ou peças que são objetos de fetiche.
O mesmo autor comenta que, hoje, moda é adotada pelos meios de comunicação como aquilo que usamos e, ao que tudo indica, essa visão não é somente dele, já que Nathalie Bailleux, na obra “Modes et Vêtements”, define o termo como um modo coletivo de se vestir e, ainda, acrescenta que ela pode ser uma forma de se portar. Assim, fica claro que as roupas não são utilizadas somente para cobrir o corpo. Há algo mais por trás de um simples visual. Ela remete aos grupos sociais e com a maneira como eles se comportam. “É um dos sensores de uma sociedade. Diz respeito ao estado de espírito, aspirações e costumes de uma população”, explica Ruth Joffily, no livro “Jornalismo e a produção de moda”.
Moda como cultura
A socióloga Marilda Costa não pensa duas vezes ao afirmar que a moda é claramente uma expressão cultural e como tal, está enraizada num contexto histórico e em cada sociedade, mesmo que muitas pessoas não consigam enxergar isso de forma clara. Ela diz que se as pessoas tivessem condições de entender a história da vestimenta do mundo ocidental desde a Grécia Antiga seria possível notar que moda e cultura caminham de mãos dadas. “As questões econômicas e sociais, assim como determinados valores gerais de cada momento histórico vão estar representados na moda”, explica.
Marilda fala sobre as duas definições da palavra cultura. Clique na imagem para ouvir o áudio. Foto: Luciana Morais. Canal do Youtube: "Internet a nova moda".
Mariana Domitila é técnica em Moda e Estilismo e diz que para notar tal fato é preciso, apenas, parar e fazer o exercício de observar a trajetória da vestimenta e suas modificações. “A gente vê o quanto essa relação (moda e cultura) é forte. A moda foi evoluindo, se transformando e se transforma até hoje de acordo com as mudanças sociais”. Você provavelmente se recorda ou já estudou algum momento histórico em que é possível notar o vínculo entre a moda e as mudanças sociais. Basta lembrar de situações como o período da Primeira e da Segunda Guerra Mundial.
Esses conflitos se tornaram momentos de ebulição de novas formas de enxergar o mundo, refletindo no comportamento e na aparência das pessoas. Nesse contexto, uma situação totalmente nova começava a se delinear: inúmeras mulheres se tornaram responsáveis por manter a casa, temporária ou definitivamente, atitude quase que exclusiva dos homens. Tendo uma nova função que não, somente, a de donas de casa, muitas tiveram que dar adeus a algumas vaidades como o uso de vestidos e roupas suntuosas, adotando um visual mais “clean”, ou seja, mais limpo, simples. Para isso alguns artifícios foram usados, como o corte de cabelo, mais curto do que de costume, e calças compridas, coisa extremamente ousada para a época.
E não é preciso voltar muito no tempo para notar a relação entre as mudanças do mundo da moda e a situação social. A crise econômica iniciada nos Estados Unidos, em 2008, é um exemplo disso, trouxe modificações e novas formas de encarar o consumo. Com a falência de vários bancos e a derrocada do sistema imobiliário, a economia estava em baixa. Naquele momento, os americanos, mesmo os não afetados pela crise, passaram a gastar menos até por respeito ao que estava acontecendo no país, de acordo com informações de Rosana Ferreira, divulgadas em 16 de fevereiro 2009, do site "Mulher", no Portal "Terra". A reportagem faz referência a uma matéria do jornal “The New York Times” que revelou que, a partir da crise, o consumo passou por algumas transformações, sendo algo considerado até mesmo desrespeitoso gastar uma grande quantia numa peça de roupa.
No entanto, como a moda é, por vezes, irresistível, o que mudou não foi exatamente o consumo, mas, sim, a forma de consumir. “Ao invés de fazer compras em lojas de rua ou em shoppings, elas (mulheres) preferem comprar suas bolsas exclusivas e sapatos de pele de cobra em eventos fechados a convidados e realizados em quartos de hotéis ou showrooms particulares”, divulga a referida matéria.
Mirella Lacerda, numa matéria do site “Modalogia”, indica que após esse acontecimento se disseminou uma nova prática em todo o mundo: o consumo seletivo. Na intenção de comprar menos e de forma mais eficiente, ou seja, sem gastar tanto, muitas pessoas, tanto homens quanto mulheres, começaram a repensar se fazia sentido consumir exageradamente para ser feliz, para se vestir bem. A rede mundial de computadores foi uma importante opção para que isso acontecesse. “O consumidor avalia cuidadosamente cada compra, pesquisa na internet, checa as redes sociais e conversa com os amigos antes de gastar seu rico dinheirinho”, conforme informações do “Modalogia”.
Coincidência ou não, na mesma época em que o modo de comprar sofreu algumas mudanças, surgiram diversos sites de lojas populares, como “Marisa”, “Renner” e “C&A”, que já possuem um sistema de venda online. Essa verdadeira “luz no fim do túnel” abre novos caminhos para quem deseja não apenas gastar menos e de forma consciente, mas, sim, possibilita a realização de pesquisas e comparações de preços sem sair de casa, em frente à tela do computador. Ao vislumbrar mais um nicho de mercado, essas grandes magazines começaram a fazer em parcerias com estilistas renomados. É o caso da "C&A", que recentemente criou coleções em conjunto com estilistas países como Stella McCartney, Glória Coelho e Amir Slama.
Além disso, sites conhecidos por “clubes de descontos”, como “Brandsclub” e “Privalia”, conquistaram muitos seguidores e é fácil entender o porquê. Nesses tipos de páginas, marcas já conhecidas pelo público colocam peças de roupas e acessórios a venda com desconto, tendo um preço inferior ao de lojas físicas. Opções para quem pretende não gastar tanto no momento de se vestir ou, pelo menos, comparar preços é o que não falta atualmente e não é preciso nem sair de casa para isso, basta ter um computador, celular ou qualquer aparelho com acesso à internet.
A indústria da moda
Falar sobre moda como reflexo da cultura e da sociedade e da mesma como fonte de obtenção de dinheiro parece estranho? Não para o sociólogo Cláudio Gravina, que acrescenta que essa palavra pode ser vista como extremamente contraditória, já que, ao mesmo tempo em que ela é uma expressão da cultura, de um momento histórico, do comportamento humano, está fortemente ligada ao consumo. “Ela (a moda) atende a uma indústria dentro de uma sociedade consumista e obviamente alimenta isso”.
Como encontra-se dentro de uma indústria, que visa o lucro, o processo com que a moda vem se delineando é bastante discutível, de acordo com o sociólogo. Não é possível ser ingênuo e achar que apenas as mudanças sociais e comportamentais são responsáveis pelas modificações nas vestimentas, a necessidade do consumo é alimentada por esse setor, sempre propondo novidades. No entanto, a moda não deve ser “marginalizada” por conta disso, já que ela tem sua importância. “Ao mesmo tempo, a moda um processo cultural muito rico como símbolo, expressão e forma de comportamento”, lembra.
Esse ciclo de comprar cada vez mais rápido não acontece somente no mundo na moda, mas em todos os demais setores da economia, afinal, muitos países, incluindo o Brasil, vivem de acordo com o sistema econômico capitalista, que estimula um ritmo de compras exacerbado, diz Gravina. Desde o século XVlll, momento do florescimento da sociedade de consumo com a industrialização da Europa, a moda e a indústria caminham juntas e a passos largos.
Anderson Moebus Retondar, na obra “Sociedade de consumo, modernidade e globalização”, comenta que a sensação de ter que gastar cada vez mais nessa sociedade encontra um ambiente perfeito na indústria da moda. “A criação incessante de necessidades pressupõe, logicamente, a volatilidade dos bens e objetos destinados à sua ‘satisfação’, que irá se confirmar através de um dos fenômenos centrais na formação da sociedade de consumo moderna: a variabilidade da moda”.
E essa variabilidade movimentou números impressionantes. De acordo com informações divulgadas pelo site da "Abit" (Associação Brasileira de Indústria Têxtil e Confecção), em janeiro de 2011, o setor têxtil movimentou em 2010 cerca de 52 bilhões de dólares e, atualmente, gera 1,7 milhões de empregos diretos, no Brasil. A indústria cresce a cada dia, basta reparar em alguns dados veiculados, em janeiro de 2011, pela matéria “Mercado da moda se profissionaliza e vira opção de carreira” do portal "IG", que dão conta de que em 2011, o faturamento do setor deve ser de 54 bilhões de dólares e espera-se que sejam criados cerca de 40 mil novos postos formais de trabalho. Além disso, o Brasil possui, hoje, o quinto maior parque têxtil do mundo em que são confeccionadas nove bilhões de peças de roupas por ano.
Com relação ao varejo de moda, ele movimentará este ano aproximadamente o montante de 136 bilhões de reais no país, conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa (Ibope), divulgado em 04 de fevereiro de 2011, pelo site “Leia Moda”. Os dados incluem o mercado de peças de roupas, calçados e acessórios.
As roupas falam
Se através do visual e da aparência são percebidas mudanças na sociedade, mesmo a moda sendo um setor que fatura muito dinheiro, ela consegue ser uma espécie de sensor do que está acontecendo num lugar em determinado momento, sendo assim, ela possui, ainda, mais um papel: o de transmissora, de comunicadora. Pode parecer estranho entender esse conceito num primeiro momento, mas Marilda diz que roupas, acessórios e, até mesmo o corpo, são formas de linguagem e, conforme estão adornados, a postura e o comportamento diferem.
“Ela (moda) funciona como um marcador sociológico, ou seja, de acordo com o tipo de vestimenta, de indumentária, há uma distinção entre classes sociais”, comenta a socióloga. De acordo com ela, numa sociedade de massa, na qual há uma produção em larga escala e uma distribuição e consumo dos bens e serviços, as camadas economicamente inferiores tem acesso as cópias de peças de roupas e acessórios que, originalmente, seriam destinados a elite. Isso faz com que seja difícil notar esses marcadores, já que há uma confusão com relação aos itens que pertencem a cada classe social.
A vontade de muitas mulheres pertencerem a realeza fez com que o anel de safira rodeado de diamantes utilizado por Kate Middleton no anúncio de seu noivado com o príncipe inglês William, em 16 de novembro de 2010, se tornasse uma febre em lojas populares e camelôs. A joia, que foi usada pela mãe de William, Diana, no pedido de casamento dela em 1981, foi, inclusive, tema de diversas reportagens em função da rapidez com que se disseminou como um verdadeiro vírus em todo o mundo. A possibilidade de adquirir uma peça avaliada em 35 mil dólares pela bagatela de 10 reais, ou até menos, atraiu muitas mulheres, não exatamente por sua beleza, mas por ter se tornado um objeto que representa sonhos, aspirações de uma vida mais luxuosa, mais nobre.
Acima, o vestido e o anel que se tornaram "hit". Crédito: Constance Zahn
O casamento real mexeu, também, com o imaginário de pessoas em todo o mundo. Desde o momento do noivado, em que Kate usou um vestido azul, feito pela estilista brasileira Daniela Issa, e que se esgotou em menos de 24 horas após a aparição da noiva, conforme informações do site "G1", divulgadas em novembro de 2010, até a cerimônia de enlace, ocorrida dia 29 de abril de 2011. Não foram somente as roupas femininas que chamaram atenção, você duvida que o traje militar vermelho usado por William, príncipe de Galles, provavelmente se tornará referência entre o público masculino nos próximos casamentos?!
Deu para notar que o que acontece na elite e as opções feitas por ela se tornam tendência em pouco tempo, não? E é na tentativa de estar constantemente se diferenciando de uma parcela mais humilde da população que algo interessante acontece, e isso não é de hoje. “As pessoas das camadas superiores vão procurando novos marcadores. Quem está nessas posições vai tentar ter características que não possam ser utilizadas nem reproduzidas pela maior parte da população”, comenta a socióloga.
O psicólogo e coordenador do curso de Estética da Universidade de Sorocaba (Uniso), Pedro Zille, explica que essa atitude não é incomum. “Como a gente e vive numa sociedade capitalista, em que as classes sociais são divididas, os grupos inferiores tendem a buscar o status de uma classe que esta acima da dela”. Ele acrescenta que a própria indústria da moda propicia esse comportamento ao produzir elementos para consumo inspirados em peças e acessórios semelhantes às utilizadas por uma minoria.
Zille frisa que o que ocorre nesses casos é um desejo de pertencimento a uma outra condição que não a que a pessoa vive. “É como uma projeção em que a pessoa pensa "quero fazer parte desse grupo, dessa elite, mas economicamente eu não consigo’”. A saída encontrada é a aquisição de produtos de qualidade, muitas vezes, inferior, mas que possua o mesmo design e aparência que um indivíduo que tem um poder aquisitivo maior possui.
Zille fala sobre a relação das escolhas que as pessoas fazem com a psicologia. Canal do Youtube: "Internet: a nova moda"
Marilda explica, ainda, que é possível fazer uma relação entre o comunicar da moda com as tribos urbanas, expressão criada pelo sociólogo francês, Michel Maffesoli e que se refere a um grupo de pessoas que busca criar uma rede de amigos com base em interesses e gostos semelhantes. “Você tem as roupas, o grupo e o tipo de comportamento dos indivíduos claramente vinculados”, comenta. Uma das maneiras dos membros desses grupos de identificarem é, justamente, através da vestimenta, característica de cada tribo.
Giselle Godoi Vieira explica em seu projeto de iniciação científica “A atuação do jornalismo frente à formação de novas tribos urbanas” que ter a mesma imagem perante a sociedade confere uma espécie de ilusão de identidade aos grupos, como os punks, roqueiros ou rappers, por exemplo. Além disso, a aparência tem relação com o fato de querer pertencer a uma classe, a um bando. “A adequação na vestimenta já é uma demonstração de respeito às normas do grupo, e isso faz com que a pessoa não seja marginalizada por tal grupo”, explica o autor.
Para o produtor de moda Flávio Tenguan, mesmo havendo indivíduos usando os mesmos adereços e peças de roupas, é o comportamento de cada um que fala mais alto e reflete diretamente na maneira como uma pessoa se veste, sendo praticamente uma extensão da personalidade. Opinião compartilhada por Guilherme Cury, criador e editor do blog "Moda para Homens", que acredita que através da moda é possível notar se alguém deseja ser mais um na multidão ou queira ser o centro das atenções. “A moda para mim é outra forma de expressão, que pode te esconder ou te sobressair”, enfatiza.
Muitas pessoas podem buscar, usando roupas e acessórios, ser o alvo de comentários, como é o caso de Madonna, ao utilizar trajes considerados, por vezes, inapropriados, como no videoclipe de “Like a Prayer”, em 1989. No vídeo, a cantora canta em frente a cruzes em chamas e se apaixona por um anjo negro. Dentro de uma igreja, ela canta e dança usando apenas um decotado vestido com detalhes em vermelho, podendo ser vista como a figura do diabo. O conjunto: as cenas e os trajes provocantes fizeram com que o clipe fosse condenado pelo Vaticano e eleito pelo canal de música "MTV" o mais transgressor da história, conforme a matéria divulgada em 24 de julho de 2006, pelo Portal "Terra". Confira o clip mais transgressor da história. Vídeo disponível no canal do Youtube "Madonna Clips" No Brasil, há exemplos do uso da imagem, da aparência como uma forma de transgredir, de mudar uma situação, como é o caso do biquíni, criado pelo estilista francês Louis Reard, em 1946. As duas peças, que chegaram a ser proibida no país pelo então presidente Jânio Quadros, em 1961, foram usadas por várias mulheres que, assim como Madonna, queriam aparecer e romper paradigmas. Como é o caso da eterna garota de Ipanema, Helô Pinheiro, que um ano após a proibição, foi a praia vestindo biquíni. Outro exemplo é o da atriz Leila Diniz, que, por volta de 1970, aos sete meses de gravidez, caminhou pelas areias usando duas peças consideradas pequenas para a época, se tornando símbolo da libertação feminina, conforme informações do site da revista “Manequim”. Deu para entender que a moda possui múltiplas facetas e está e sempre estará em constante mudança. Talvez seja isso que tenha encantado tanto pessoas responsáveis por comunicar sobre o tema quanto por quem consome esse tipo de informação. É dessa necessidade de transmitir ao mundo notícias, reportagens e impressões sobre uma indústria tão peculiar que nasce o jornalismo de moda.
